"What are you doing here?": O texto inevitável sobre Bojack Horseman

  
     "What are you doing here?" em um tom de voz camp e alegre, como em uma sitcom dos anos 90, é assim que essa frase nos recebe no primeiro episódio da segunda temporada de Bojack Horseman. Em "Brand New Couch" iniciamos uma jornada de um questionamento que, talvez, perdure toda a série, e inegavelmente um dos pontos chaves da segunda temporada, tanto uma frase corriqueira dentro de um roteiro, expondo com facilidade ao espectador o que os personagens fazem em cena, quanto uma reflexão sobre como Bojack é uma personagem cercada pelo fardo de suas decisões não serem tomadas de maneira consciente de seus desejos, quase que em uma reflexão Sartreana do homem como protagonista de sua própria narrativa, ao mesmo tempo que Bojack repetidas vezes se vê como vítima de sua própria história, sentindo-se um expectador, o roteiro nos mostra que, pelo contrário, é o desejo e a dúvida que movem a narrativa, em uma busca pelo que falta, uma busca pelo motivo de todas as decisões em sua busca hedonista por satisfação, uma busca vazia por não acolher os desejos do eu-idealizado. É aí, então, voltando do Novo México, que somos acolhidos com uma frase no episódio final "What am I doing here?", que culmina em uma mudança que parece real (em primeiro momento, mas não vou me ocupar das temporadas que vêm depois dessa) espelhada com a mudança igualmente forçada dos primeiros episódios que nas entrelinhas trazem o questionamento: O que estamos fazendo aqui?

    Bojack Horseman é uma das minhas séries favoritas, é uma série que marcou a minha adolescência e boa parte da minha relação com saúde mental (pro bem ou pro mal, não é isso que importa aqui), desde que comecei a assistí-la, em 2015, quando eu tinha 16 anos e passava por um dos piores momentos da minha vida, até quando finalmente terminei a minha jornada com o cavalo falante, em 2020, quando eu já era uma pessoa completamente diferente. De qualquer maneira, uma das coisas que sempre me marcou em Bojack é a maneira como o roteiro utiliza o diálogo e as conversas dos personagens, em uma metalinguagem interessante que é tão obviamente serializada, quanto capaz de tornar cada um dos personagens únicos e humanos (mesmo os animais). Desde então, a minha relação com a série é de companheirismo, e em minhas várias vezes a revisitando (fora de ordem, já que cada temporada carrega pra mim um significado muito diferente, ou em ordem, uma vez que a peça final é indiscutivelmente uma jornada extremamente rica), eu sempre notei que a segunda temporada tem uma relação muito distinta com a maneira que expõe a relação dos diálogos com as reflexões da narrativa, principalmente no que se trata da frase "What are you doing here?" - o que talvez se repita na temporada em que o Bojack atua como Philbert, dessa vez, no entanto, ela dialoga com o espectador através do cenário e do figurino de Bojack, para percebermos o estado dissociativo do protagonista, que é um péssimo ator. Em uma rasa primeira reflexão, pensando na primeira vez em que essa frase tem um real destaque na temporada, Bojack tentando dar o tom certo a uma cena dramática do filme de seus sonhos "Secretariat", sem sucesso, reproduzindo um tom caricato e sem sentido, o que nos leva a pensar que, em todos os outros momentos que Bojack fala isso, em momentos complicados, dramáticos ou de indignação, ele está utilizando o tom que deveria ter usado para seu filme, mas eu não gostaria de parar por aí, esse é o caminho mais fácil, no fim, a frase se comunica com todas as narrativas que acontecem durante a temporada, de Los Angeles a Cordovia.

    O primeiro episódio acaba com o "What are you doing here?" final, o take perfeito, depois de uma ligação de sua mãe, é assim que a temporada é aberta, iniciamos a jornada de finalmente compreender que nenhum dos personagens sabe porque está ali, eles só estão, levados pelo desejo, como pelas correntezas da água, onde procurando por accomplishment (esqueci a palavra em português), acabam se perdendo na pergunta que ecoa pela temporada inteira, nos lembrando que essa é a jornada do protagonista, uma busca incessante pela autoafirmação, mas também uma estadia em lugares que nunca foram exatamente dele. Talvez a resposta para a pergunta esteja num dialogo onde Diane pergunta a ele se, se tivesse tido a chance de atuar em Secretariat como deveria ter sido, ele se sentiria completo, e a resposta que "Sim, talvez por um tempo" é tão significativa quanto a momentânea felicidade de uma família que não era nem mesmo sua no Novo México, destruída por suas próprias decisões, e cumprimentado por sua velha amiga com a mesma pergunta que inicia a temporada: "What are you doing here?

    Nos breves meses que Bojack passa no Novo México, um único episódio, que marca a temporada suficientemente para parecer mais de um, esse questionamento se torna mais ético do que existencial, agora, muito menos sobre sua falta de direção em tomar responsabilidade por seus próprios desejos e consequentemente por sua própria satisfação, e muito mais sobre o quão deslocado ele está em uma cidade pequena, integrando uma família que não é sua, de maneira extremamente invasiva e estranha, tentando fazer parte de uma relação, que ao mesmo tempo que parental é também predatória, com a filha mais velha do casal (um espelho de sua relação com a Sarah Lynn, talvez, mesmo que sem paralelo direto, é dessa maneira que Bojack se relaciona com todas as mulheres em sua vida). O que Bojack estava fazendo no Novo México, era talvez uma reflexão que tivesse evitado o que ele e Penny estavam fazendo no barco, uma reflexão sobre as relações predatórias que ele constantemente cria com as mulheres da série, o desejo de ferir, neste caso muito mais Charlotte do que Penny, em uma busca de satisfazer a necessidade de validação através de um relacionamento romântico ou sexual, nesse caso, era isso que movia a narrativa, a pergunta sobre o que ele estava fazendo ali, então, o tira do agente passivo do acaso de ter recebido os avanços sexuais de uma adolescente, o que o personagem tenta passar, ao negá-la, mas deixar a porta aberta, o roteiro e o diálogo da série o colocam como a gente ativo de suas decisões, independente de suas intenções, a realidade das coisas, a partir das atitudes de bojack, era aquilo que ele estava fazendo ali. 

    Diane tem um papel muito interessante dentro da série, num geral, mas, é a partir da segunda temporada que compreendemos o papel dela dentro da narrativa, para além de um dos muitos interesses românticos do protagonista, como alguém que, de alguma maneira, está em uma posição muito parecida com a de Bojack, se durante a segunda temporada vemos o cavalo frustrado com sua carreira sem qualquer significado, presa em uma sitcom de qualidade duvidosa, fadado a nunca ser levado a sério como ator, Diane vive o dilema de procurar por um eu-ideal intrinsecamente ligado às causas sociais, mais uma vez levando aos debates éticos de nosso próprio papel enquanto seres que tomam decisões. Se a narrativa precisa fazer com que Bojack repita várias vezes "What are you doing here?" para retirá-lo de seu looping de auto-piedade não merecida, com Diane a narrativa não se preocupa com nada além de nos mostrar que, através de suas próprias decisões, desde desmascarar um abusador, até (não) escrever um livro sobre a Rafa Kaliman cordoviana (estou relendo esse texto alguns meses depois para poster e iiiixee que piada velha... diz muito sobre quando eu comecei a escrever), a personagem, mesmo que não saiba o que está fazendo, é muito consciente das decisões que toma e de suas consequências em sua própria vida, é isso afinal, que a leva a não encarar seu esposo após voltar da viagem fracassada que foi antes motivo de atrito, é isso que a torna crucialmente diferente de Bojack, mesmo que num mesmo valor narrativo. A jornada de Diane, no entanto, é intrinsecamente relacionada com a reflexão destes diálogos que ecoam durante a segunda temporada, ela é recebida por Bojack em sua casa com essa mesma pergunta "What are you doing here?". Quando finalmente ela decide fugir, percebendo que nenhuma das suas escolhas, até então, lhe trouxe a satisfação que queria, é aí que a narrativa decide colocá-la no mesmo patamar que o protagonista, é aí que ela deixa de ser responsável por sua própria existência e satisfação. Diane, no entanto, retoma sua vida em um silêncio narrativo, Mr. Peanutbutter, diferente de Charlotte, não precisa questionar Diane sobre suas decisões, sobre o lugar dela dentro da narrativa, ela já é responsável por esse lugar, e os roteiristas fazem questão de demonstrar isso na sua evolução como personagem nas próximas temporadas (que eu não vou mesmo me estender sobre!). 

    Quando eu comecei a escrever esse texto, acho que eu gostaria de ter feito uma reflexão sobre Sartre, ou sobre psicanálise, como são a maioria dos textos que eu escrevo. No entanto, decidi retornar a esse texto por estar re-re-re(...)revendo a série. E acho que, apesar do quão interessante possa ser uma análise completa de todas as vezes que essa frase é dita, que é com certeza intencional. Mas, reassistindo a série, eu percebo que me distancio cada vez mais dos problemas e identificações com os personagens, me aproximando de outros problemas e outros personagens, e eu gostaria de levar o texto nessa direção, com a permissão do eu do passado... que tinha uma ambição e uma plano concreto... que, infelizmente, precisaria de mais trabalho do que eu sou capaz de produzir. 
    
    O caminho que eu quero tomar é: vamos ficar apenas na segunda temporada. Quando Bojack volta para casa, ele é recebido pela mesma Diane deprimida, e pergunta para ela: "Still here?" E é assim que o último episódio da temporada começa. Ela ainda está ali, e ele retorna de uma jornada para o exato mesmo lugar, cometendo os mesmo erros. E essa pergunta é sobre isso,  trazendo para um momento mais pessoal, sempre que eu retorno para Bojack Horseman, eu retorno me perguntando "O que eu estou fazendo aqui ?" , eu re-re-re(...)revejo na esperança de presenciar momentos que me façam pensar sobre os momentos que eu mesmo estou vivendo, e acho que, pela primeira vez, eu entendi, a série vira para mim e me pergunta, depois de 8 anos, ouch, ano que vem ela vai fazer 10 anos... Still here? E sim... Mas não do mesmo jeito, não com o mesmo olhar, acho que me sinto cada dia mais consciente de onde eu estou, acho que por isso decidi terminar esse texto. Still here. What are you doing here?
    

    

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