Projeto de Pesquisa - RPG como ferramenta projetiva na psicoterapia infantojuvenil


Introdução

Os RPGs, da sigla em inglês roleplaying games,comumente traduzido como “Jogo de Interpretação de Papéis”, são jogos analógicos, com um conjunto de regras que são, geralmente, mediadas por meio de dados, caracterizando-se na reunião de jogadores para a construção colaborativa de uma narrativa, podendo os jogadores assumirem dois papéis: o de jogador e o de mestre. O primeiro papel se caracteriza a partir de uma personagem que será construída e personificada pelo Jogador, modificando as histórias e narrativas conforme tomam decisões, interpretam as questões pessoais de seus personagens e exploram a resolução e enfrentamento de problemas que são proporcionados pela história, que é de  responsabilidade da segunda figura, o Mestre. Este, por sua vez, assume o papel de narrador   da trama, construindo cenários, explicando situações e fabricando conflitos que serão lidados de maneira livre pelos Jogadores, construindo histórias por muitas vezes épicas, parecidas   com o que estamos acostumados a ver na literatura e no cinema, como um teatro de improviso. 

De acordo com Peixoto Filho (2018), escrito por Gary Gygax e Dave Arneson em 1974, o jogo de tabuleiro Dungeons and Dragons é descrito como o primeiro RPG de mesa, influenciado por cenários como os do universo literário de J. R. R. Tolkien e, como delineado por Veugen (2004), este se origina inicialmente dos wargames, que podem ser traduzidos como “jogos de guerra”, consistentes na reencenação de batalhas históricas utilizando pequenos modelos dos soldados, o que, posteriormente, inspiraria Gygax e Arneson, passando a introduzir elementos fantásticos, como os da literatura Tolkeniana, agora encenando  batalhas originais, que consistiam em confrontos de magos, elfos, guerreiros, dragões e outras criaturas imaginárias. 


No Brasil, o mercado para estes jogos se inicia nos anos 80, como apontam as pesquisas de Peixoto Filho (2018), no que foi a chamada “geração xerox”, popularizando estes jogos com a reprodução autônoma dos livros de regras trazidos por pessoas físicas para o Brasil, ainda sem tradução e publicação oficial no país. Apesar da popularidade crescente, o primeiro RPG oficialmente lançado no Brasil só apareceria dez anos depois, em 1991, com a publicação do Generic and Universal Role Playing System (GURPS), podendo ser traduzido como “Sistema de Interpretação Genérico e Universal”, que tinha a proposta de adaptar qualquer cenário para a sistematização de tabuleiro e dados dos RPGs, pela Devir Livraria. No que diz respeito às publicações inerentemente brasileiras, ainda de acordo com o supracitado autor, no mesmo ano de publicação, surge o Tagmar, considerado o primeiro RPG originalmente brasileiro.

É importante ressaltar que, como delineado por Santos (2017), ensaios e pesquisas já demonstravam a importância das atividades lúdicas na formação da personalidade, expressão dos sentimentos e na vivência de conflitos internos em crianças e adolescentes. Com isto em vista, é necessário que a psicologia aproprie-se de ferramentas que façam parte do universo infanto-juvenil, como os supracitados jogos, utilizando-se do brincar como um espaço para a exploração dos relacionamentos e características que em outras circunstâncias não poderiam ser exploradas e experimentadas livremente. 

Considerando isto, levanta-se, aqui, a hipótese de que, através do processo de projeção e identificação com o personagem e com as narrativas que são criadas e experienciadas pelos jogadores, é possível explorar questões de maneira mais leve e de fácil compreensão para essa faixa etária, utilizando-se da troca que existe entre o Mestre, e que, dentro do processo terapêutico, seria o próprio terapeuta, guiando através da narrativa e da interpretação uma oportunidade de desenvolver melhor suas habilidades socioemocionais e, em alguns casos, até mesmo explorar demandas que de outra maneira talvez não pudesse.

Diante do que foi exposto, este projeto tem como objetivo abordar acerca dos jogos que envolvem a interpretação de papéis por meio da criação e exploração dos personagens em um contato direto entre os participantes, buscando revisar literaturas acerca da utilização destes como um instrumento de psicoterapia, a fim de encontrar características nestes jogos que possam ser exploradas dentro da psicologia, com o intuito de explorar a hipótese de que esses jogos podem tornar-se uma ferramenta positiva dentro da psicologia para a exploração dos potenciais com crianças e adolescentes, e de que o brincar e a interpretação são um laboratório importante para que se experimente e conheça aspectos de si.


Justificativa


Historicamente é possível observar que o atendimento em saúde mental com o público infanto-juvenil, pautou-se por muito tempo em “sanar  as  problemáticas  que caracterizavam o país enquanto nação atrasada,  como a  delinquência  e  a  mortalidade  infantil, a  partir  da moralização da sociedade e do controle de suas condutas” (Taño e Matsukura, 2015, p. 441), surgindo de maneira sistematizada e direcionando suas práticas com viés higienista, que pouco prezavam pela individualidade das faixas etárias e, tampouco, que se preocupassem de se debruçar no universo infantil, de fato, ainda, por muitas vezes optando pela reclusão em casos mais graves.

Com isto em vista, como apresentado nos estudos de Taño e Matsukura (2015), em conjunto com a iniciativa da diminuição cada vez maior dessa herança de institucionalização e higienização dos processos individuais e das experiências infantojuvenis que, por quaisquer motivos, não se enquadrem no que é esperado pelo status quo, é importante compreender que devemos, cada vez mais, enquanto psicólogos e profissionais da saúde mental buscar compreender o universo infanto-juvenil e inserir nossas técnicas e referencial teórico dentro do universo que os permeia, para que a promoção de saúde mental com esta faixa etária possa dar-se de maneira não apenas mais efetiva, estabelecendo uma melhor comunicação e proporcionando tomadas de consciência mais enriquecedoras. 

Ainda, de acordo com a pesquisa levantada pelas supracitadas Taño e Matsukura (2015), o que se pode perceber da atenção em saúde mental com o público infantojuvenil é que na realização das práticas em campo em que se trata das situações de extremo sofrimento, há ainda bastante fragilidade, uma vez que, apesar dos Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) se demonstrarem como centro de atenção prioritário, perduram fragilidades no que se trata de uma atenção mais próxima a essa faixa etária e que se demonstre mais efetiva. Ainda do vértice dos mesmos autores, aponta-se que para sanar estas questões, então, deve-se considerar que crianças e adolescentes não são apenas projetos políticos-ideológicos, com viés de docilizar-las e transformá-las em futura força de trabalho e seres produtores, mas, que elas passem a ser reconhecidas como sujeitos que necessitam de espaço, cuidado e atenção que lhes proporcionem a saúde, autonomia e participação social necessária para desenvolver habilidades socioemocionais necessárias ao convívio e para sua automanutenção, sendo este o foco necessário para os profissionais em saúde mental que se encontram com esta faixa etária.

Logo, considerando o que foi exposto, espera-se encontrar através desta pesquisa, revisão e correlacionamento bibliográfico, maneiras de propor este jogo como uma opção de ferramenta, baseando-se em suas características, enquanto facilitador dentro da psicoterapia infantojuvenil para acesso a conteúdos inconscientes, maneira de comunicação lúdica e exploração de potenciais através da exploração de cenários que atravessem a experiência do paciente.

Fundamentação Teórica

De acordo com o livro de regras do módulo básico da edição brasileira do GURPS (Generic and Universal Role Playing System, ou Sistema Genérico e Universal de Interpretação de Papéis) um Role Playing Game (RPG) é definido como: 


“(...) um jogo onde cada participante faz o papel de um personagem, tomando parte em uma aventura imaginária. O tipo da aventura é definido por um árbitro chamado Mestre (...) O Mestre descreve a situação e diz aos jogadores o que seus personagens vêem e ouvem. Os jogadores então descrevem o que eles estão fazendo para vencer o desafio. O Mestre descreve o resultado conseguido com estas ações... e assim por diante.” (Módulo Básico GURPS, 1994, p. 8).


Acrescentando ainda que, o mesmo manual descreve o RPG como “uma forma de

lazer que dá aos participantes a possibilidade de criarem histórias, de forma integral ou parcial, e viverem papéis dentro das mesmas.” (Módulo Básico GURPS, 1994, p. 8). 


No que se trata do objetivo geral do jogo, o manual de regras deste mesmo traz ainda: 


“Parte do objetivo do roleplaying game é fazer com que o jogador enfrente a situação como seu personagem o faria. Um RPG permite que o jogador faça o papel de um implacável samurai japonês, um padre sensato ou um garoto de rua fazendo clandestinamente sua primeira viagem espacial... ou qualquer outra pessoa. Numa dada situação, cada uma destas pessoas reagiria de maneira diferente, e é este o objetivo do roleplaying game.” (Módulo Básico GURPS, 1994, p. 8)


Levando em consideração o que foi descrito por Santos (2021), ao descrever como se dá a jornada terapêutica, em “Sobre o Início do Tratamento” (1913), Freud utiliza a metáfora de um jogo de xadrez, sendo necessária a abertura e finalização, utilizando-se de regras e procedimentos inerentes ao cenário que será criado e explorado em terapia, introduzindo o paciente e suas experiências ao setting terapêutico. Aqui, o jogo de xadrez é utilizado para ilustrar as ilimitadas possibilidades que a terapia proporciona para a criação de cenas que deem ao terapeuta acesso aos conteúdos da “outra cena” (inconsciente), demonstrando a importância da abordagem aos conteúdos e situações que serão trazidas pelo paciente. Dentro desta cena que é construída no setting terapêutico, segundo Santos (2021), um dos pontos mais importantes na análise é o encontro entre o analista e paciente, sendo o mais significante no tratamento psicanalítico é a transferência, considerada a via de acesso ao inconsciente. 

Logo, fazendo um paralelo entre as características terapêuticas que se configuram enquanto a construção de um cenário a fim de acessar o inconsciente, e a configuração dos jogos de RPG de tabuleiro, onde o Mestre e Jogador encontram-se para explorar juntos cenários fantasiosos, de que maneira podemos utilizar destas características a fim de fortalecer a transferência com o paciente que possa se beneficiar da ludicidade do brincar? 

Como aponta o Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis (2008), a projeção liga-se a maneira como o indivíduo percebe e responde ao ambiente em que se insere de consoante seus interesses, vivências, características e afetos particulares a ele, como por exemplo, expondo seus traços de personalidade segundo suas respostas aos estímulos a que é apresentado, sendo possível utilizar-se desta característica da psique para compreender a organização interna daquele que se observa.

Ainda, encontra-se na mesma obra, a seguinte definição para o processo de projeção dentro da psicanálise: 


“No sentido propriamente psicanalítico, operação pela qual o sujeito expulsa de si e localiza no outro — pessoa ou coisa — qualidades, sentimentos, desejos e mesmo “objetos” que ele desconhece ou recusa nele. Trata-se aqui de uma defesa de origem muito arcaica, que vamos encontrarem ação particularmente na paranóia, mas também em modos de pensar “normais”, como a superstição.” (Laplanche & Pontallis, 2008, p. 374)


Considerando o que Freud escreve em Escritores criativos e Devaneios (1907), o brincar na infância corresponde à fantasia e ao escrever criativo que aparecem na adultez, os três funcionando enquanto criação de um mundo próprio e uma maneira de adaptação do que atravessa o indivíduo durante sua vida, tornando o mundo parte de seu imaginário interno, possibilitando ao sujeito adaptar-se e tornar os elementos externos mais agradáveis.  

O brincar, de acordo com Sousa, Pedroza & Volpe (2019), proporciona momentos de prazer e desprazer, auxiliando enquanto fonte de autoconhecimento e conhecimento acerca do mundo, compondo-se em um ato reflexivo, criativo e que oferece a oportunidade de elaborar suas vivências, e manifestar-se de maneira mais criativa perante as ações do mundo.

Nesse sentido, espera-se encontrar dentro do RPG, considerando tanto suas características enquanto possibilidade de exploração do imaginário, quanto da capacidade humana de localizar no outro qualidades, sentimentos, desejos etc, no processo de projeção e identificação (Laplanche & Pontallis, 2008), uma ferramenta de experimentação que possa ser utilizada em psicoterapia, a fim de facilitar o acesso ao mundo infantil e ao inconsciente dos pacientes que possam beneficiar-se desse instrumento lúdico. 

É sabido que o brincar e os jogos são expressões humanas fundamentais durante a infância, principalmente no sentido de desenvolver-se e encontrar naquilo que é imaginário e lúdico uma possibilidade de externalizar conflitos que, talvez, de outra maneira não tivesse a oportunidade, dessa forma, Aberastury escreve em seu livro “A criança e seus jogos”, que: 


“Ao  brincar,  a  criança  desloca  para  o  exterior  seus  medos,  angústias  e problemas internos, dominando-os por meio da ação. Repete no brinquedo todas as situações excessivas para seu ego fraco e isto lhe permite devido domínio sobre os objetos externos à seu alcance, tornar ativo aquilo que sofreu passivamente, modificar um final que lhe foi penoso, tolerar papéis e situações   que   seriam   proibidas   na   vida   real   tanto   interna   quanto externamente    e    também    repetir    à    vontade    situações    prazerosas.” (Aberastury, 1992, p. 15)


Segundo Martinez (2019), o RPG proporciona àquele que joga “a  oportunidade  de  viver  um  ou  vários  personagens, novos mundos e diferentes realidades, porém apesar disso, a escolha e construção do personagem não é aleatória, pois depende do nível de identificação que o jogador estabelece,  tendo  a  oportunidade  de  demonstrar  no  jogo  seus  conflitos  internos  e desejos, expressando-os de uma forma saudável”. (p. 19)

É desse vértice, então, que propõe-se a possibilidade da utilização do RPG de mesa como uma ferramenta de psicoterapia e, para explorar tal possibilidade, pretende-se construir neste trabalho uma revisão de literatura, sintetizando estudos acerca do tema, localizando conceitos chave que possam fornecer, ou não, evidência de que o RPG é um instrumento psicoterapêutico viável na clínica psicanalítica infantil.


Referências


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Santos, E. A. S. (2017). Os roleplaying games (RPGs) e a performance na psicologia do luto. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto. Recuperado em 2022-04-26, de www.teses.usp.br


Frias, E. R. (2010). Jogo das representações (RPG) e aspectos da moral autônoma. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. Recuperado em 2022-04-26, de www.teses.usp.br


Taño, B. L., & Matsukura, T. S. (2015). Saúde mental infantojuvenil e desafios do campo: reflexões a partir do percurso histórico/Child and adolescent mental health and field challenges: reflections from the historical path. Cadernos Brasileiros De Terapia Ocupacional, 23(2), 439–447. https://doi.org/10.4322/0104-4931.ctoAR0479


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