(Projeto de Mestrado para PPG-FFLCH 2024) O PAPEL DA ESTÉTICA NA ARTE (TRANS)GRESSORA E NA SOBRE(VIVÊNCIA) DE PESSOAS TRANSGÊNERO

LINHA DE PESQUISA: ESTÉTICA E FILOSOFIA DA ARTE

Problemática

Na perspectiva que a transfobia é estrutural e estruturante, construindo a sociedade com protagonismos, narrativas e filosofias que são pensadas por e para pessoas cis, marginalizando os pensamentos e expressões que transgridem o que é tido por essa sociedade como “normal”, “natural” e “comum”, não é equívoco dizer, então, que vivemos em uma sociedade indiscutivelmente cisgênera. É desse vértice que se constrói o corpo trans como um “Outro” a ser observado, desumanizado e visto como um mistério que não deve ser narrado por si, destinado a encontrar a constituição do seu “eu” permeada por opressões e sofrimentos.

Em “Pedagogia das Travestilidades”, Maria Clara Araújo dos Passos, pedagoga, doutoranda em educação e afrotransfeminista, descreve uma das maneiras que é construída nossa noção de normalidade, nos levando a uma construção binária do que é “normal” e o que é “divergente”, assim são construídas as dicotomias que normatizam, docilizam e oprimem corpos que não deveriam existir dentro da lógica cisgênera patriarcal branca: 

"Uma das características da normalidade é que ela se apresenta como ahistórica, de forma que se perde de vista seu contexto de formação. Ela aparece como algo que se poderia chamar de "normal-natural" e, dessa maneira, se equipara com a noção de maioria" [...] "O pensamento binário é construído a partir de categorias que aparecem como opostas: de um lado o hegemônico, o socialmente reconhecido, e, do outro, aquilo que é pensado como seu oposto" (PASSOS, 2022, p. 14)


Nesse sentido, a identidade de pessoas trans está fadada à essa construção de normalidade, constituída em um sistema que empurra toda transgressão do ideal cisheteronormativo branco para a margem da sociedade. Desumanizadas, comparadas ao bárbaro, e condenadas a serem taxadas como algo que não deve sair do campo do não dito, conceito que aqui qualifica os discursos que não são falados explicitamente, que não se nomeiam e, por isso, ficam à mercê do imaginário. Uma vez que, “entre o dito (conteúdo explícito) e o não dito (conteúdo implícito), há uma extensão a ser percorrida pelo interlocutor, um espaço que dá margem a inúmeras construções de significados” (COSTA, 2015, p. 506). Assim, os significados construídos no campo daquilo que se evita abordar são em sua maioria dissociados da realidade, e existem dentro de uma construção imaginada daquilo que se teme nomear. Em uma sociedade que tem como objetivo erradicar existências que não foram concebidas em seu viés normatizador, a transgeneridade não deve jamais ser explicitada e nomeada, só permitindo que essas identidades existam em uma margem social de um imaginário que os constitui como monstros à espreita, predadores, corpos fetichizados e que não existem de outra perspectiva se não a da fetichização ou da piada.

Nesse não dito que está o sustentáculo da invisibilização das pessoas trans, é através dessa visão de que o corpo transgênero é algo que não habita a luz do dia, existindo apenas no imaginário cisgênero, que ao mesmo tempo repulsa, também deseja nossos corpos e nossa expressão, não à toa temos grandes nomes artísticos como Urias, Jup do Bairro ou Linn da Quebrada, com letras explícitas sobre suas vivências. O pajubá e gírias utilizadas por pessoas trans viralizam e se tornam parte do vocabulário diário de pessoas cisgêneras que não sabem das origens do que consomem. Em contraste, o Brasil é também, pelo décimo quarto ano seguido, o país que mais mata pessoas trans no mundo, com 131 pessoas trans assassinadas por transfobia em 2022, segundo o relatório mais recente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais - ANTRA. É importante levar em consideração a subnotificação de casos e que não estão ali contabilizados as inúmeras violências que levam a população trans ao suicídio, inclusive, a impossibilidade de mapear casos de pessoas não assumidas que são assassinadas ou suicidadas antes de terem a chance de expressar por completo suas identidades, eternizadas em obituários que não condizem com sua existência, esquecidas em uma memória que não as contempla.

Apenas muito recentemente, no ano de 2018, a transsexualidade foi retirada do rol de doenças mentais da OMS - Organização Mundial de Saúde, fixando um prazo de até janeiro de 2022 para que os respectivos conselhos e órgãos fiscalizadores dos países que a compõem adotassem a medida. No Brasil, especificamente, desde o começo do ano de 2018 o Conselho Federal de Psicologia já orientava que as identidades trans não fossem tratadas de uma visão patológica, mas do ponto de vista identitário e existencial. No entanto, considerando uma medida tão recente, tanto do ponto de vista da formação dos profissionais envolvidos no processo de acolhimento e compreensão das identidades trans, que são majoritariamente pessoas cisgêneras, é que se deve considerar o papel da sociedade cisheteronormativa na real concretização da medida tomada pela OMS, destarte levantando o questionamento: É possível que, em tão pouco tempo, a sociedade, de fato, passou a encarar as identidades trans para além dos olhares de patologização? De que modo a construção de sujeito em nossa sociedade é influenciada pelas constituições do que é saudável e do que é doença? E como são atravessadas as pessoas que tiveram por mais de 28 anos, oficialmente, suas identidades, experiências e expressões reduzidas a uma patologia? 

É desse ponto de vista que a transgeneridade se manifesta na imagética de nossa sociedade, num geral escritas por pessoas cis, ou interpretadas por pessoas cis e, quando não, de uma perspectiva barbarizante de nossos corpos e da nossa cultura, ou em prol da higienização da mesma. O corpo trans é um corpo político e, por isso, sua mera imagem e constituição de sujeito, ao transgredir as concepções cisheteronormativas, são o suficiente para causar escandalização e, por esse efeito, é possível utilizar da arte como forma de expor suas demandas e sofrimentos. Explicitando, nomeando e ressignificando o que antes estava fadado ao discurso velado e a objetificação dos significados de suas vivências.

Assim, buscando transcender a patologização dos sofrimentos e invisibilização que a sociedade cisheteronormativa reserva às pessoas trans, que foi construída por anos de preconceito e desinteresse das ciências humanas em retratar as experiências LGBTQIA+ de maneira que os sujeitos sejam protagonistas de suas narrativas. Espera-se encontrar na psicanálise, e sua natureza subversiva, uma maneira de observar as pessoas trans e sua narrativa existencial estética, a fim de construir uma interlocução entre psicologia e estudo da filosofia da arte. Para pesquisar de que maneiras a arte tem a contribuir com a ruptura dos sustentáculos da lógica manicomial que é reservada às pessoas trans que procuram amenizar os sofrimentos que lhe são impostos pela sociedade, tanto dentro das paredes do atendimento psicossocial, mas principalmente em todo o escopo que compõe a sociedade que ainda as observa com olhares borrados pela transfobia.

É desse vértice que se levanta o questionamento: é possível encontrar na arte um meio de protagonização do corpo trans e suas vivências? De que maneira as pessoas transsexuais tem se utilizado da estética para sobreviver em um mundo que é indiscutivelmente cis centrado? E, ainda, é possível que, através de seu caráter transgressor, conseguiremos encontrar nos estudos da psicanálise moderna sobre arte contemporânea um meio de compreender e naturalizar os corpos transgênero? 

Espera-se encontrar as respostas para as questões aqui levantadas nos estudos de estética, e uma alternativa para os corpos trans que vivem à margem, silenciados, através de uma leitura psicanalítica e social da construção do sujeito, do imaginário social e dos espaços transicionais que se constituem na arte, que podem ser catalisadores de uma mudança tanto interna quanto externa. É possível que, através da arte, que tem atuado como uma maneira de renda e sobrevivência para essas pessoas que, num geral, são expulsas de outros espaços cis centrados, como as universidades, empregos formais e até mesmo da atenção social básica, uma forma de integrar as demandas dessas pessoas e encontrar nela uma possibilidade de denúncia, mas também de autocuidado e individuação em meio as violências sofridas, nesse processo. Compreendendo a arte trans como um fenômeno artístico e estético próprio, com referências e ontologia própria, assim como as suas experiências, não podendo ser qualificada de uma perspectiva cishetero centrada e normatizante.


Desenvolvimento do tema

A estética, e consequentemente a arte, sempre estiveram inerentemente relacionadas às identidades transgênero, seja pela necessidade de adequação aos espaços cisnormativos, utilizando da transformação de seus corpos e da adequação aos padrões impostos, ou pela natureza transgressora da aparência de uma pessoa que está na linha da não conformidade com a cisgeneridade, de forma a causar um incômodo, que é análogo ao que buscam as artes performáticas. Como se a existência do corpo político transsexual fosse por si só parte de sua existência artística, uma mostra diária das transgressões cometidas na simples performance do existir. 

No entanto, ao mesmo tempo que de natureza transgressora, as identidades e a constituição de indivíduo são atravessadas pela inadequação de existir em uma sociedade transfóbica. É nesse tom que as existências trans, sejam elas binárias ou não, se tornam objeto do imaginário cisgênero, existindo apenas através dos olhares da transfobia estrutural, que dita como e quando é adequado ter ou não uma identidade de gênero transgressora. No “Vocabulário de Psicanálise”, Laplanche & Pontalis (1991) expõem uma das definições de objeto como: 

“No sentido tradicional da filosofia e da psicologia do conhecimento, enquanto correlativo do sujeito que percebe e conhece, é aquilo que se oferece com características fixas e permanentes, reconhecíveis de direito pela universalidade dos sujeitos, independentemente dos desejos e das opiniões dos indivíduos (o adjetivo correspondente seria “objetivo”).” (LAPLANCHE&PONTALIS, 1991, p. 342)


Dizer que as identidades trans tornam-se objeto da sociedade cisheteronormativa é dizer que são constituídas definições, expectativas e características permanentes, que são observadas e captadas através de lentes de uma sociedade que não está preparada para receber as inadequações de identidades que desafiam o status quo. Por isso, a pessoa transsexual torna-se um objeto. Cria-se a figura da “boa pessoa trans” inalcançável, que é esteticamente análoga a uma pessoa cis, em oposição às pessoas trans que não se parecem em nada com a imagem cis e por isso são bárbaras, marginalizadas, raivosas, e não merecedoras de terem suas identidades validadas dentro do sistema cishéteronormativo, já que "a tradição normatizadora constrói como eixos discursivos os binômios civilização e bárbarie;  civilização ou perversão" (PASSOS, 2022,  p. 13).

Dessa forma, são criadas dicotomias e afastamentos entre os seres humanos, em prol do controle de seus corpos. O que é “civilizado”, binário, cisgênero, heterossexual e branco é visto como “de bem”, “respeitável” e digno de ocupar os espaços de poder. Enquanto são reservados aos “bárbaros”, aqueles que não estão de conformidade com o que é socialmente imposto, ou seja, não binários, transsexuais, identidades não hétero e pessoas não brancas, num geral, são marginalizadas através da escandalização, do medo, que é usado como viés de desumanização das pluralidades humanas.

Em “Sou o monstro que vos fala” (2015), Paul B. Preciado expõe parte dessa construção cisheteronormativa e branca a qual, especificamente a psicanálise, mas não somente ela, fazendo refém as ciências humanas. É exposto que, a maioria dos textos e práticas psicanalíticas giram em torno do poder discursivo dos homens brancos heterossexuais e burgueses, que são frequentemente confundidos com o “humano universal” permanecendo centrais nos discursos e instituições psicanalíticas da modernidade colonial, mas não somente dela. É importante frisar que a psicanálise é um reflexo de todo o contexto social científico que tem valorizado o pensamento deste “humano universal”, que nada tem de universal quando trazido para o campo da realidade. 

Não é exclusividade da psicanálise a construção dessa figura hegemônica e colonizadora, as vozes transgênero, mesmo quando protagonistas e ocupando espaços de poder, são atravessadas pelas construções da transfobia, objetificadas e, mesmo quando não silenciadas, trazidas a um patamar de bárbaras. Não seria diferente na arte. Em um apanhado histórico da relação da sociedade com o diferente dentro da arte, em especial as identidades que transgridem as normas de sexo, Fabri (2015), ao abordar os freak shows (shows de horrores que aconteciam para expor corpos não normativos como atrações de circo), expõe o seguinte:

“Neste cenário reinava o modelo do “monstro”, que apagava outras formas de distinção, igualando sexo, gênero, idade, raça ou enfermidade e pelo qual toda diferença ficava confundida na monstruosidade com o intuito de ensinar à sociedade o poder da norma” (FABRI, 2015, p. 4) 

Apesar de transcendidos, os freak shows (shows de horrores) ainda são uma cicatriz na maneira como a sociedade vê o diferente, mais uma vez, os tornando objetos, e não sujeitos, mais uma vez reservando às pessoas LGBTQIA+ o papel de piada, ou de objeto exótico, feito para ser visto, mas nunca admirado. Por isso é importante construir um estudo de estética e filosofia da arte que se ocupem das expressões e intervenções que saem do eixo desse “humano universal”. 

Já não é mais uma discussão tão acalorada dentre os acadêmicos da arte e da estética que a mesma não se ocupa, nem deveria se ocupar, somente da retratação do belo, mas também do que causa incômodo e movimenta a sociedade em denúncia, mostrando não somente o que é bonito, mas também as facetas horríveis e monstruosas dos seres humanos. 

Em oposição ao papel que lhes é reservado pela arte mainstream, as pessoas que transcendem o eixo cisheteronormativo encontram na produção artística uma forma de vazão e de monetização da beleza de seus sofrimentos diários, sem torná-la palatável aos olhos da sociedade que lhes empurra para a marginalidade, procurando transcender e denunciar as opressões através do desenho, como Lino Arruda, autor das HQs Monstrans e Cisforia, ou da poesia e música como Bixarte, autora do álbum “Traviarcado”, nomes de peso na arte brasileira, mas que não representam nem de perto a vasta variedade de produções queer brasileiras. 

Para além, não somente suas produções artísticas a partir das vivências e necessidade de denunciar as opressões vividas, são parte do que pode ser estudado pela filosofia da arte, o próprio transcender do eixo cisgênero, a vontade de moldar o corpo ao que se sente e expressar o Eu por completo, assim, “o corpo transgênero pode ser entendido como um artefato tecnológico resultante de uma construção hormonal e cirúrgica, que o leva a ter uma aparência pessoal de acordo com seu sentimento.” (FABRI, 2015, p. 7) 

É assim que a arte transgênero se faz transgressora, sendo não somente um ofício, mas uma essência de si, uma saída para os sofrimentos que o ser trans tem como inerente, fazendo com que o indíviduo transsexual deixe de ser narrado pelo Outro que o observa e o trata como algo que pertence apenas ao não dito, que não deve nunca ser nomeado, jogado à margem da sociedade, encontrando sua expressão apenas no existir e performar, confundindo sobreviver com fazer arte.

“A dor é preciosa e pode ser bela. Ou, ainda: em toda beleza há dor, na dor pode haver alguma beleza sutil e preciosa.” (RIVERA, 2007, p. 3)  É assim que a experiência de um corpo que se reconstrói em orgulho, seja física ou metaforicamente, torna-se performática e artística, é na dor das opressões que estão veladas as belezas e a poesia de uma arte (trans)gressora. 

Apesar dessa intrínseca relação entre obra e artista, e mesmo a concepção do artista como sua própria obra, não se deve esquecer que tanto a arte, quanto as identidades transsexuais se constituem em mundo além de seus desejos e fantasias, e essas obras serão recepcionadas dessa forma, uma vez que: 

“O artista designa-se por sua obra e não antes dela, ele não preexiste como artista a seu trabalho. Por mais que uma obra apresente-se como francamente autobiográfica, ela distancia-se do eu que a enuncia em prol de uma universalidade. Freud afirma que a verdadeira arte poética residiria na conjuração do que é estritamente pessoal em prol de um laço com o outro, o espectador ou leitor.” (RIVERA, 2007, p. 16) 



É através desse laço com o outro que se pode encontrar um espaço, então, para transcender as opressões e pré-concepções que a sociedade constrói sobre o corpo transgênero. Ao enunciar o que há de mais profundo no seu Eu, seja na arte ou na performance de seu gênero no dia a dia, a pessoa que transgride as grades da cisnormatividade conjura sensações que desafiam o conforto das concepções do que é ser homem, mulher ou nenhum dos dois, indo além das dicotomias criadas pelo patriarcado. É através do contato com o outro que o corpo transsexual existe, não em um vácuo ou uma bolha segura. Nesse sentido, só é possível que esse corpo não seja violado se essa conjuração e laço sejam construídos e narrados por pessoas transsexuais, uma vez que, quando concebidos por pessoas cisgêneras, virão embebidos e borrados pelos olhares fetichizados e normatizantes de identidades que não estão preparadas para traduzir as mais profundas questões que relacionadas com o transgredir da cisheteronormatividade. É necessário que o corpo cis compreenda os espaços de poder que lhes foram dedicados e, então, se acomode no papel de espectador da arte da (trans)gressão.

É nesse sentido que, em seu trabalho “Antropofagia Queer”, Silva (2016), descreve a arte queer:

“(...) torna visíveis opressões instituídas culturalmente e que de alguma forma empurra para margem transexuais, travestis, gays, lésbicas, pessoas cisheterossexuais cujos corpos não respondam à norma. Nesse sentido, a estética queer funciona como um mecanismo capaz de elencar visibilidades (im) possíveis no “cistema”.” (SILVA, 2016, p. 11)


É visibilizando em primeira pessoa os indivíduos discordantes que os deslocaremos da condição de desumanizados, para a condição de seres individuais e que possuem demandas, sentimentos e uma expressão própria, não mais vistos como corpos exóticos ou repulsivos mas, apenas, diferentes uns dos outros, não mais objetos da cisgeneridade, mas sujeitos humanos singulares, combatendo assim a lógica de que há um “humano universal”, lógica essa que tem sua manutenção através do que se nomeia como “cistema”: 

“O cistema é o meio pelo qual corpos cis assumem/possuem maior legitimidade em detrimento dos corpos não conformados na norma de gênero. Além disso, tal sistema é um potencializador de identidades normativas no que diz respeito à relação entre gênero e sexualidade, num mecanismo que preconiza normalidade/normatividade (...)” (SILVA, 2016, p. 17) 


É ao conceber o cistema que somos capazes de compreender que a transfobia é estrutural e estruturante, ao nomear as forças que oprimem é que somos capazes de compreender as violências a que estão sujeitos os processos de subjetivação dos corpos que transgridem a norma cisgênera e as violências a que todos os corpos estão sujeitos nesse mecanismo que prevê a construção de uma normatividade, a construção de um “humano universal”, que é bem menos universal do que parece, por ser ele restrito ao homem cis hetero branco e burguês, e aqui evoco os questionamentos: Quantos desses “humanos universais” fazem parte do seu círculo social? Quantos destes compõem os espaços de poder? 

Por seu caráter subversivo é que evoco a psicanálise como meio de compreensão dos processos subjetivação desses corpos que não se encaixam nem mesmo nos conceitos por ela delineados, tornando visível e denunciando o que antes fica a mercê do não dito que é reservado aos corpos marginalizados e (trans)gressores, dessa forma acessando a realidade de suas experiências em prol de sua emancipação. 


Objetivos

Geral 

Estudar a expressão artística de pessoas transgênero e seu papel na sobrevivência e individuação destes, fazendo interface entre filosofia da arte e psicanálise.


Objetivos Específicos

  • Compreender a relação psicossocial e filosófica entre gênero e estética na expressão transgênero;

  • Associar estudos em estética e filosofia da arte com a produção em psicanálise;

  • Delinear as correlações entre a filosofia da estética e a expressão de gênero não conformadas;

  • Experimentar a arte como forma de individuação e vazão dos sofrimentos que advém das opressões de uma sociedade transfóbica;



Justificativa 

De acordo com Paul B. Preciado (2021), a libertação de gênero e das sexualidades não pode se configurar de modo a criar o que ele chama de “uma aceitação mais pop da opressão”, ou seja, não é através da transformação das identidades e expressões transgressoras em palatáveis mercadorias que se alcançará a verdadeira emancipação das opressões que esses corpos são diariamente vítima, assim:

“A liberdade é um túnel que se cavou com as mãos. A liberdade é uma saída. A liberdade – como aquele novo nome que vocês me chamam agora, ou aquela cara vagamente peluda que vocês veem diante de vocês – é feita.” (PRECIADO, 2021, p. 11)


Construir a liberdade ou, nas palavras de Preciado, cavar com as mãos uma saída, é um árduo trabalho que, ao passo que os espaços de poder são reservados ao “humano universal”, aqui já muito bem caracterizado, os espaços de trabalho, luta e sofrimento são destinados às pessoas que não correspondem com as expectativas sociais que lhe são impostas pelo cistema, que é cruel com qualquer indivíduo que o transgrida, sobre isso, Mariah Rafaela Silva (2016) suscita: 

“Os corpos trans, os corpos gays efeminados, as drags, as lésbicas masculinizadas, etc. estarão fazendo política em modo 24/7. Esses corpos são corpos políticos por “natureza”. Mesmo ao responder determinadas tecnologias de produção do gênero, eles, os corpos, utilizam os meios terapêuticos e biopolíticos de produção de normalidade para construir-se enquanto sujeitos, mas ao mesmo tempo subvertendo a própria lógica de normalidade, isso porque desestruturam a “lógica” de inteligibilidade de gênero. (SILVA, 2016, p. 22)


Assim é construído boa parte do sofrimento das pessoas transsexuais, mas não apenas delas, na luta por emancipação e liberdade. A exclusão e silenciamento são parte dos sofrimentos diários de uma população que tem hoje uma expectativa de vida de 35 anos, expectativa que não se deve somente à grande taxa de assassinatos de pessoas trans, em especial mulheres, identidades femininas e pessoas negras, mas também, ao suicídio físico e social.  

Não é possível pensar a arte e a estética de pessoas trans sem antes pensar as agruras a que elas são submetidas, e não é possível pensar esses sofrimentos dissociando-os da maneira com que essas pessoas têm encontrado para sobreviver, à parte da prostituição, é muito comum encontrar pessoas transsexuais e LGBTQIA+ num geral nas artes, por isso, a arte queer é também um importante meio para compreender a manutenção da saúde mental de pessoas atravessadas por tantos sofrimentos, assim: 

“Pode-se definir a arteterapia como um processo terapêutico que se utiliza da arte e suas variadas técnicas e linguagens expressivas com o intuito de facilitar o processo criativo e de autoconhecimento, o aprendizado social, satisfação pessoal, a comunicação de conteúdos inconscientes e conscientes por outros meios além do verbal, entre outras características importantes para o desenvolvimento humano.” (ALBANI, 2017, p. 34)


Os conteúdos conscientes e inconscientes de corpos políticos devem ser compreendidos também de uma ótica política e filosófica, uma vez que é impossível dissociar os mais de 28 anos que essas pessoas tiveram suas meras identidades consideradas como uma doença. A patologização dos corpos transsexuais é uma cicatriz que ainda se carrega nos consultórios onde essas pessoas são atendidas e, por isso, os métodos utilizados para que essas pessoas expressem suas dores deve ser escolhido de maneira minuciosa, que faça sentido para suas existências. 

É através da visibilização da expressão destas pessoas, que se trilha um caminho para a mudança social, e para o deslocamento da condição de “objeto social” e uma existência construída no que não pode ser nomeado, transformando os sujeitos-objeto em cidadãos e não apenas de personagens de um imaginário cisgênero, nesse sentido escreve Fabrini (2016):

“(...) práticas artísticas que figurariam, segundo Foster, a política cultural de afirmação de diferentes subjetividades, sexualidades ou etnicidades na tópica do “trauma”, do “real” ou do “referencial” (ou seja, do que é impossível, não obstante necessário, de se representar na realidade psíquica, na direção de Lacan). (FABRINI, 2016, p. 2 apud FOSTER, 2001, p.p. 209-230)”


Assim se constitui a necessidade de visibilizar a produção estética de pessoas “traumatizadas” pela realidade do cistema, indivíduos que vivenciam os silenciamentos da cisgeneridade, enquanto são constituídos no imaginário social de maneira animalesca e desumanizada, perpetuando suas opressões.

Estudar a expressão de corpos que foram diminuídos a condições médicas é, infelizmente, retornar a essas concepções para desconstruir o que antes foi embasamento para a compreensão de suas identidades. Por isso, ao mesmo tempo que aqui proponho a arte como um modo de entender as expressões transsexuais e denunciar as opressões a que são submetidas, não é estranho que esse mesmo meio de compreensão e denúncia seja também uma ferramenta de manutenção da saúde mental dos adoecimentos que essas opressões e esse cistema causam nas pessoas por ele subjugadas e silenciadas. 

Em cartas a Wilhelm Fliess, Freud (1887-1904) descreve de que maneira a ficção pode ser utilizada pela psique como forma de escapismo para os sofrimentos e demandas do inconsciente: 

“O mecanismo da ficção é idêntico ao das fantasias histéricas. Para criar seu Werther, Goethe combinou algo que havia experimentado — o amor por Lotte Kastner — com algo que ouvira: o destino do jovem Jerusalém, que morreu cometendo suicídio. É provável que estivesse brincando com a idéia de se matar, e encontrou um ponto de contato nisso, identificando-se com Jerusalém, a quem emprestou uma motivação retirada de sua própria história de amor. Por meio dessa fantasia, protegeu-se das conseqüências de sua experiência. Portanto, Shakespeare estava certo ao justapor ficção e loucura.” (MASSON, 1986, p. 252)


Ao olhar para “Os sofrimentos do jovem Werther”, de Goethe, Freud expõe que a expressão artística é uma maneira de processar as questões internas, traduzindo aquilo que não somos capazes de entrar em contato e processar plenamente sem danos ao nosso Eu. Desse modo, há uma troca das sensações e pulsões originárias por outra, que não é exatamente a mesma, mas “psiquicamente se aparenta com ela”, o que é chamado dentro da teoria psicanalítica de sublimação. “Freud descreveu como atividades de sublimação principalmente a atividade artística e a investigação intelectual.” (LAPLANCHE&PONTALIS, 1991, p. 495)

O sofrimento e a saúde mental de pessoas transgênero é também tradução de sua estética e de suas denúncias dentro da arte, nesse sentido é que se espera construir uma pesquisa capaz de colocar em interface a expressão artística e filosófica de pessoas silenciadas e oprimidas pelo cistema, com o potencial de emancipá-las de seus sofrimentos através dessa mesma arte e intervenção estética que é inerente às suas existências.


Etapas da pesquisa 

Inicialmente, antes de qualquer intervenção direta de campo, é importante que seja construída uma pesquisa bibliográfica capaz de dar aporte às intervenções que serão feitas posteriormente. Para isso, utilizando a revisão sistemática de literatura como método para separação e análise de produções científicas aptas a embasar o desenvolvimento da proposta exposta neste projeto, por ser “uma modalidade de pesquisa, que segue protocolos específicos, e que busca entender e dar alguma logicidade a um grande corpus documental, especialmente, verificando o que funciona e o que não funciona num dado contexto.” (Galvão & Ricarte, 2019, p. 2) 

Pretende-se neste trabalho, dentro das qualidades das pesquisas sistemáticas, realizar uma meta-síntese dos documentos levantados dentro dos bancos de dados que serão listados em momento oportuno, quando a mesma for desenvolvida, desenvolvendo uma meta-etnografia ou meta-análise qualitativa, que, segundo Siddaway, Wood & Hedges (2019), tem como objetivo realizar a síntese dos estudos levantados acerca de um tópico. Neste caso, levantar as produções que existem dentro dos estudos de estética e filosofia da arte, em interface com os estudos de psicanálise e intervenções bem sucedidas com a arte e a expressão do eu de pessoas transgênero.

Finalizado o levantamento de dados e feita a meta-análise dos mesmos, espera-se encontrar um embasamento teórico suficiente para a formulação de entrevistas com artistas transgêneros, esperando encontrar no relato pessoal e de vivência. Um espelho de todo aporte teórico levantado nos estudos bibliográficos realizados, como forma de compreender se há comunicação entre a vivência diária dos artistas transsexuais, os estudos em filosofia da arte e as hipóteses levantadas sobre os processos de individuação e expressão de si psicanalítico, e como maneira de criar uma base de dados capaz de expressar os benefícios e malefícios da vivência transsexual expressa através do ofício artístico. 

Nessa etapa, serão desenvolvidas entrevistas abertas e, se possível, amostras dos trabalhos destes artistas, como maneira de comunicar as informações levantadas com suas expressões artísticas e performances, como meio de compreender de que maneira se constrói a estética desse universo expressivo. Mas, também, como forma de comunicar a expressão artística com os benefícios na saúde mental, e como veículo de denúncia dos sofrimentos enfrentados em uma sociedade transfóbica.

Passada a etapa de pesquisa e levantamento de informações com artistas que já fazem parte de suas cenas locais e o reconhecimento das expressões que já acontecem previamente à elaboração deste trabalho, pretende-se transcender o campo do levantamento de questionamentos, para tal, promovendo oficinas de arte terapia, abertas à população transsexual que se interessar, como maneira de verificar os dados levantados nas etapas mais questionadoras deste projeto. É nessa etapa que se espera encontrar o verdadeiro potencial da comunicação entre filosofia da arte, psicanálise e as populações marginalizadas.

Finalizadas as oficinas de arteterapia, o mesmo questionário aberto desenvolvido no início do trabalho será aplicado nas pessoas participantes das oficinas, produto dos resultados dos levantamentos bibliográficos e de dados iniciais do projeto. A fim de compreender e comunicar as experiências dos usuários das oficinas com as dos artistas que foram referência para a construção da mesma. 

Finalmente, para elaboração do trabalho final, um trabalho de pesquisa qualitativa, utilizando também o método de análise sistemática e meta-síntese,  fazendo interface entre os estudos iniciais e os resultados coletados diretamente na população trans, sejam os artistas que já fazem parte de suas respectivas cenas, ou dos participantes das oficinas de arteterapia, e os estudos de filosofia da arte e estética levantados no processo de construção desta pesquisa. Espera-se encontrar respostas e saídas para os questionamentos aqui levantados, e mais importante, espera-se construir uma possibilidade de (trans)cender as opressões e construções que são reservadas às pessoas transsexuais, utilizando a arte e a filosofia como ferramenta para tal.



Bibliografia  

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